Daqui a uma semana começa as aulas, acho que por isso a galera da
república planeja dar uma festinha para os novatos hoje à noite – Isso foi o
que Fatinha disse pela manhã – Odeio noticias de última hora, logo hoje que vou
passar o dia inteiro fora trabalhando com minha tia.
Ontem, tivemos tanto trabalho que fomos obrigadas a comer fora, foram
dois hot dogs para cada uma, os lanches enganaram a fome legal, mas só até
chegar em casa, ás 23hs e tantas.
Confesso que o trabalho é um pouco estressante, mas Sandra conseguia me
entreter com suas histórias, o tempo passava tão rápido com ela que quando eu
parei para notar, já estávamos no fim da semana.
Depois de uma semana inteira de trabalho eu estava merecendo mesmo uma
noite de euforia – Fatinha pelo menos me fez acreditar que essa seria a vibe –
Mas havia um problema... O tempo.
– Tia! Será que conseguiríamos chegar em casa antes 19 horas?
– Bom! Talvez se meu carro voasse sobre esse rio de automóveis que anda
um metro a cada 10 minutos, só assim será possível – O suor escoria no rosto
estressado dela – Por que você não me falou que tinha compromisso hoje à noite –
Perguntou ela com a voz fadigada.
– A verdade é que eu disse, por duas vezes.
– E o que foi que eu respondi?
– Alguma coisa parecida com... “Não se preocupe”.
– Foi o que eu pensei – Disse ela decepcionada – Pense pelo lado bom, você
vai chegar no horário em que a festa começa a ficar boa. Por volta da
meia-noite?
– Você não está falando serio, está? – Perguntei.
– É claro que não – É óbvio que não, minha tia não ficava me alugando,
mas seria de mais deixa-la tão preocupada.
Olhei para a gigante fila de carros e logo me conformei com a situação,
encostei minhas costas no banco, coloquei meu fone de ouvido e apertei o play
do meu celular e relaxei, relaxei até o momento em que a Sandra começou a
falar.
– Eu já sei o que vou fazer?
O carro deu um tranco, seguido com o ronco do motor, testemunhei Sandra
jogar o carro para cima da calçada e fazer o retorno na pista contrária, onde o
transito fluía bem. Em meio minuto Sandra para o carro de novo, mas agora no
estacionamento do Metrô.
Corremos para a plataforma, lá Sandra me devolveu a esperança de curtir
a confraternização da minha amiga Fatinha.
– Agora nós iremos chegar tão cedo, que você vai ficar entediada de
tanto esperar pela hora certa de sair de casa – Disse minha tia ofegante.
As estações passavam rápidas e os ponteiros do relógio pareciam nem se
mexer, parece que minha tia não exagerou quando disse que nós chegaríamos cedo.
Estou mais tranquila.
– Sabe que essa correria me fez lembrar-se de uma situação que tive no
passado – Começou Sandra, rindo da lembrança.
– Qual? – Eu estava rindo junto com ela de algo que eu nem sabia o que
era.
– Foi o dia em que eu conheci seu tio Ricardo – Ela sorriu de novo –
Quem nos conheceu naquela época não nos reconheceria hoje.
– “Putz”! Eu e o Ricardo éramos dois nerds escrotos. “Se liga!” Eu
estava nervosa para apresentar meu TCC e então passei a noite relendo o
trabalho, acordei no dia seguinte daquele jeito, vesti uma roupa qualquer como
de costume e corri para a faculdade, senti o cheiro irresistível do pãozinho de
queijo vendido na porta do Metrô, uma delícia. Comprei o combo que acompanhava
o maior copo de café expresso e corri para plataforma com toda aquela tralha,
mas o seu tio tinha que aparecer do nada para esbarrar em mim, então ambos
tomamos banho de café expresso.
– Que desperdício.
– Eu fiquei louca, a vontade que eu tinha era de acertar a cabeça dele
com alguma coisa, mas quando eu olhei para ele e vi que estava na mesma situação
eu travei a língua. Deixei acumular tanta raiva que desabei em lágrimas na
frente dele, lamentei por ter sujado ele e por ter encharcado seu livro de “Direitos
trabalhista” de mais de mil páginas.
– Mas e aí?
– Ele não pareceu se preocupar com o que aconteceu com ele, mas não
parou de pedir desculpas, não achou suficiente me levar em uma loja e comprar
roupas para mim, ele assistiu minha apresentação do TCC e fez questão de
almoçar comigo todos os dias só para constatar de que eu estava melhor.
– Ele estudava na mesma faculdade?
– Coincidência não é mesmo? Só sei que ele grudou em mim de uma forma
que acabamos ficando juntos até hoje.
– E onde estava o Lucas nessa época?
– Ele estava morando com a mãe dele, a Lívia, mas um dia ela surtou e
entregou o filho para o Ricardo e foi viver seu sonho de atriz na Europa... É
claro que isso é outra história.
Eu já estava em casa de banho tomado e pronta para me vestir. Sandra me
ajudou a escolher a roupa desta noite, não foi nada de inacreditável.
– Vou ligar para Amanda, hoje ela vai ficar até mais tarde no
escritório, lembrei que a chave reserva do carro está lá.
– Vai pedir a ela para buscar o carro?
– Sim, Amanda é um amor, sempre me salva na hora que preciso.
Estava sozinha no quarto terminando de me arrumar quando encontrei meu
par de brincos, foi minha mãe quem me dera. Lembrei-me do que ela havia dito – “Filha!”
“Eu te amo, lembre-se disso sempre” – Tenho certeza que quando ela falou isso,
já estava sabendo da leucemia.
– Gostei dos brincos! – Disse Sandra no instante em que desligava o
celular.
– São os meus favoritos... – Prometi para minha mãe que eu usaria os
brincos em ocasiões especiais, hoje é especial por causa da Fatinha, minha
melhor amiga, mas ainda não acho que seja o momento para usa-los –... Mas hoje
eles vão ficar na caixinha.
– Tudo bem! Agora vamos? Vou deixar você lá. Lucas foi ao trabalho com
Ricardo e deixou o carro dele em casa. Você está com o endereço.
– Sim!
Sandra conhecia a cidade muito bem, por isso que ela seguiu por caminhos
que não se encontravam com o transito caótico de São Paulo.
– Se importa se eu ligar o rádio? – Perguntou ela.
– Não!
A música começou a tocar, era um rock nacional, a vocalista cantava
muito bem e a letra era incrível.
Ficamos ouvindo a música sem dizer uma só palavra, quando a canção
acabou ela disse.
– Ela tem razão... Essa tal de Pitty... “Não deixe nada pra depois, não
deixe o tempo passar, não deixe nada pra semana que vem, porque semana que vem
pode nem chegar”
Suspirei.
– Chegamos! – Disse ela.
Saí do carro e caminhei alguns passos, mas voltei para dizer...
Eram
oito da manhã quando ela me ligou contando as novidades – Ainda bem que eu fiz
as pazes com ela – Somente a Fatinha se divertia com as minhas histórias –
Contar para ela me fez me sentir tão bem que duas horas no celular foram poucas
para tanto entretenimento. Contudo, por mais que minha noite com a Rock Urbano
tenha sido boa, Fatinha superou todas as boas noticias.
–
Vamos ser vizinhas – Disse ela.
Fatinha
explicou. Disse que foi aprovada no vestibular da FUVEST e que iria morar em
São Paulo para cursar medicina na Universidade de São Paulo (USP) – Não era
nenhuma novidade para mim, minha amiga sempre foi esforçada e conquistar uma
vaga na USP é só um resultado obvio de muita dedicação – Já estava tudo pronto
para sua mudança, Fatinha vai se instalar numa republica, na Cidade
Universitária, pertinho do metrô, pertinho de casa.
Parece
que semana que vem ela termina de fazer a mudança, estou ansiosa. Pretendo
comprar um presente de boas vindas, mas meu orçamento já está no vermelho – Quando
ainda morava em Peruíbe consegui levantar uma grana com alguns bicos de
garçonete num quiosque, mais já foi tudo com meus caprichos aqui – Detesto
pensar na hipótese de pedir emprestado para Sandra, mas vejo que não tenho
alternativa.
Quando
o crepúsculo aparecer, vou saber que Sandra chegou, então falarei com ela, mais
enquanto o sol do meio-dia “estralar” no jardim, o negocio é ir improvisando
para que o dia não se arraste.
Talvez
seja o momento de conhecer melhor aquele garoto carente que ainda não tive
tempo de conversar. O que será que Carlinhos pensa de mim? Será que ainda sou
uma intrusa para ele? Como posso chegar nesse menino sem parecer que estou
implorando sua atenção? Não estamos sozinhos, Lucas parece estar de folga... E
está enfurnado em seu quarto com seu irmão... Provavelmente jogando vídeo game.
Peguei
um pacote de biscoitos e um copo de leite gelado e fui fazer uma visitinha.
Bati na porta sutilmente e foi Lucas quem atendeu.
–
Opa! Olha se não é a minha estrela do rock – Lucas sorria para mim mais
malicioso do que antes.
–
Para de bobagem – Era difícil conter o riso com o jeito malandro dele – Vai um
biscoito aí?
–
Uhum! – Lucas abocanhou uma bolacha e bebeu um grande gole de leite – Carlinhos!
Já sei quem pode te dar uma lavada no Mortal Kombat!
–
Duvido que exista alguém que me supere – Disse Carlinhos fitando a TV.
–
Felizmente existe alguém – Continua Lucas.
–
É mesmo? E quem é? – Debocha Carlinhos.
–
Nossa prima Rebeca... A IN-DO-MÁ-VEL – Lucas me anunciou como um apresentador
de programa de auditório. Que ridículo.
Entrei
no clima da brincadeira e encenei.
–
Prepare-se para ser esmagado – Não vi como estava minha careta, mas tenho quase
certeza que consegui intimidar.
–
Tenho medo de você, sabia garota? – Disse Lucas com aquele jeito besta dele.
–
Pera aí! Pensei que você tinha me dito que garotas não entravam nesse quarto –
Reclamou Carlinhos.
–
É verdade, por isso não tem nenhuma aqui.
Como
assim? Que conversa mais sem noção é essa? Esses moleques estão tirando uma com
a minha cara?
–
É mesmo? E ela é o que? – Diz Carlinhos, referindo-se a mim.
–
Quem? A Beck?
–
Tem outra?
Já
estava na hora de acabar com essa conversa fiada.
–
Eu sou a exceção Carlinhos, se você está com medo de me enfrentar... Fala logo...
É mais bonito do que ficar arrumando desculpas para fugir de mim – Estava
provocando o garoto e ele aceitou.
–
Pegue seu controle e reze para não ser ridicularizada.
Metido
esse menino, mas eu estava tranquila, pois eu era boa no game e Carlinhos não
sabia disso.
–
Com medo? – Perguntei num tom arrogante.
–
Não mesmo! – Carlinhos respondeu no mesmo tom.
A
partida começou e Carlinhos conseguiu encaixar um combo de golpes que levou
embora 70% da vida do meu personagem, tentei revidar, mas o garoto foi
inteligente e conseguiu defender e finalizar o round com outro combo perfeito.
Não havia subestimado Carlinhos... Era eu que estava enferrujada mesmo.
O
segundo round começou e foi eu quem venci com muito sufoco, mas não adiantou, o
garoto estava motivado e venceu mais uma vez.
–
Tenho que confessar que você é melhor do que o Lucas, mas você vai precisar
comer muito “arroz e feijão” para me vencer – Debochou Carlinhos.
–
Tive piedade de você garoto – Ninguém acreditou.
–
Se quiser um replay? Só não vou aceitar desculpas quando você perder –
Carlinhos estava se divertindo com minha cara.
Sempre
gostei de uma boa competição, aceitar a revanche era tentador e mesmo sendo um
simples jogo eu tinha em meu espirito competitivo o dever de recuperar minha
honra, mas Lucas, que eu quase esqueci que estava ali, se manifestou.
–
Vamos deixar esse jogo para mais tarde, está um sol ótimo lá fora, podemos
almoçar no shopping, pegar um cineminha... Sei lá, qualquer coisa fora desse
quarto. O que vocês acham?
Pensei
que Carlinhos não aceitaria a proposta de Lucas, mas ele parecia estar mais
entediado do que o irmão. Hoje eu me contentaria estar em casa com os meninos,
mas eu percebi que hoje estaria em qualquer lugar que eles estivessem.
Era
um passeio simples que não exigia muito do meu guarda-roupa, por isso que
decidir vestir um vestido preto com estampa de caveiras e meu All Star
preferido. Deixei as lentes de contato em casa e coloquei meu Ray Ban Wayfarer.
Fitei o espelho e fiquei feliz por não estar com olheiras, mas já estava
enjoada do meu cabelo preto, precisava mudar quem sabe umas mechas vermelhas ou
alaranjadas, penso nisso depois.
Tocava Radio
Active do Imagine Dragons no som do carro. Carlinhos
tagarelava sobre animes, mas minha atenção estava em Lucas que mantinha um
silêncio incomum.
–
Está tudo bem? – Perguntei enquanto esperávamos na fila do ingresso para o
cinema.
–
Estou sim! – Lucas respondeu distraído.
A
resposta dele não foi o suficiente e ele percebeu quando notou que eu não estava
convencida.
–
Hoje pela manhã recebi uma ligação do Guto, ele disse que Flávio mentiu quando
alegou que estava doente antes do show.
–
Como assim – Perguntei.
–
Parece que Flávio tinha outros planos, inventou uma mentira para nos despistar.
A verdade é que ele foi gravar um single secretamente... Resumindo, Flávio está
em outra e deixou a gente.
Lucas
olhava o catalogo dos filmes em cartaz com o olhar franzido, rejeitou todas as
opções, mas o problema não parecia ser os títulos apresentados e sim oque
estava passando na sua cabeça.
–
Como Guto ficou sabendo? – Pergunto.
–
Não entendi direito... Parece que um amigo dele trabalha na gravadora e acabou
vendo Flávio estonteante assinando contrato... Ou algo do tipo.
Não
conhecia Flávio para julga-lo, mas se ele fez isso mesmo... Ele é um traidor
filha da... Deixa pra lá. Contudo, pensando bem, Guto pode ter entendido errado
e Flávio só está sendo crucificado injustamente. Talvez Lucas devesse pensar
mais um pouquinho nisso.
–
Guto tem certeza disso? – Perguntei.
–
Eu acredito nele – Afirmou Lucas.
–
Mas e se ele estiver errado? – Espera aí! Por que eu estou questionando tanto?
Não conheço Flávio, nem faço ideia de como ele é.
Talvez Guto tenha motivos para acreditar que Flávio
seja egoísta e falso. Esse “negócio” de acreditar que todos tenham boas
intenções é uma fraqueza... Uma fraqueza da Ana... Meu Deus! Todo esse carinho
e atenção que venho recebendo, está me deixando vulnerável aos meus
sentimentos, estou deixando de observar por detrás das ofertas as verdadeiras
intenções... Não posso permitir que meu coração seja tão ingênuo de se
escancarar para todos, preciso desacelerar as coisas e sempre me lembrar de que
tudo isso é temporário.
– Duvido. Guto não é do tipo que sai por aí
acusando os outros. O amigo dele deve ter sido bem convincente...
Mais cedo ou mais tarde vamos ficar sabendo – Lucas apontava o dedo para o
visor do seu celular e eu entendi.
Dito e feito. Foi voltando para casa que Lucas
recebeu a mensagem de Guto confirmando tudo em três palavras. “A bichinha está
fora”.
Fiquei pensando na decisão de Flávio de seguir
carreira solo, isso é tão comum no mercado da música, deixar um grupo para
seguir sozinho com novos projetos, não tem mal algum, mas Flávio agiu errado...
Na minha opinião. Penso que se ele tivesse comunicado a banda de seus planos o
grupo teria conversado e chegado em uma solução. Eu acho.
Era quase crepúsculo quando chegamos em casa. Lá
estava o Golf prata parado com os vidros escuros fechados. Quem será o
desconhecido?
– E agora? O que é que ele quer? – Perguntava Lucas
com a testa franzida.
Lucas parou o carro e nós descemos.
O sujeito também saiu do carro, enfim pude ver seu
rosto.
– O que você está fazendo aqui Flávio? – Perguntou
Lucas.
O garoto de lentes azuis, tão artificiais quanto
seu cabelo amarelo-gema, erguia sua sobrancelha, transparecendo sua arrogância.
– Bom! Com certeza Guto deve ter vomitado os
últimos acontecimentos, por isso vou ser objetivo. Eu vim buscar minhas coisas.
Flávio era esnobe. Cada palavra que ele falava
soava com arrogância.
– Vamos acabar com isso logo – Disse Lucas.
– Vamos! Quanto mais rápido eu sair daqui melhor...
Ainda tenho uma festa para ir, não quero me atrasar – Além de arrogante, Flávio
era irônico.
O garoto metido a besta passou por Carlinhos e eu
como se nós fossemos invisíveis, senti a hostilidade nojenta dele, e no mesmo
instante uma raiva me consumiu.
– Parece que alguém passou o dia chupando limão –
Disse Carlinhos.
– Você também percebeu? – Perguntei.
– O quê? É melhor a gente ficar bem longe desse
cara, porque com um mau humor desses é capaz de acabar com qualquer felicidade.
Que tal continuarmos com nosso jogo de hoje cedo?
Os olhos de Carlinhos eram os mesmos olhos da minha
tia Sandra, só que mais inocentes. Aqueles olhos escuros e sinceros fez minha
mente cambalear inibindo a raiva que eu sentia de outrora.
– Vamos! Preciso bater em alguém.
Foram pelo menos 40 minutos de entretenimento até
Lucas aparecer, ele estava daquele jeito triste e misterioso. Fiquei com a
atenção na TV e ao mesmo tempo nele, mas abandonei o controle do vídeo game no
instante que ele saiu do quarto.
– Já volto Carlinhos! – O garoto não questionou.
Consegui alcançar Lucas quando estávamos na
cozinha, não fiz cerimonia, fui logo falando.
– Não vai me dizer que essa cara de bunda é por
causa do Flávio?
A um silêncio.
– Não é por causa dele... E sim... As máscaras que
ele deixou cair.
– Posso dar minha opinião? – Pergunto.
– Manda aí!
– Você deveria estar comemorando, Flávio parece do
tipo que gosta de subir na vida de elevador. Não adianta levar a banda sozinho
nas costas, a banda toda tem que ajudar e Flávio não está preparado para uma
responsabilidade dessa magnitude.
Sabe aquele momento em que você vê uma pessoa pela
primeira vez e no instante que bate os olhos nela a impressão que tem é de
repulsa? Então, eu senti isso por Flávio, não sei se isso é bom pra mim, mas
até que o tempo prove o contrário eu vou continuar com essa imagem horrenda
dele de antipático e arrogante.
– Lucas! Flávio não merece sua preocupação, agora
Guto, Ramon e o Barata... Eles sim parecem se preocupar com a banda tanto
quanto você. Penso que Flávio fez sua escolha e ainda cuspiu no prato... Deixe-o viver o sonho dele; espero que quando acordar ainda tenha sobrado alguém
que goste dele.
Estava silêncio de novo e Lucas deixou de me fitar
para mexer na geladeira.
– Eu estava pensando... E se eu fizesse uma salada
de maionese para o jantar?
Como assim? Será que ele não ouviu nada que eu
disse?
– Já está com fome?
– Qual é o seu problema? – Estava ficando
estressada com o silêncio dele, esse humor bipolar estava acabando comigo –
Falei tanta besteira assim? – Será?
– É claro que não. Você disse que Flávio não merece
tanto minha preocupação... Tem razão, a banda está em um ótimo momento...
– Você está sendo irônico!
– De forma alguma, está tudo certo mesmo... Ou você
esqueceu que eu te convidei para banda na frente de todo mundo? Não está
faltando nada!
– Mas eu não confirmei nada! – Lembrei-lhe.
– É verdade! Por que você ainda não aceitou?
– É muita responsabilidade e além do mais você sabe
que vou ficar só até terminar o colégio, isso se eu não for antes.
– Não fale bobagem. Em um ano muitas coisas podem
acontecer... E eu sei que você gosta de cantar, todos nós vimos como você é
boa.
– Não quero falhar com vocês.
– Se estiver falando em falhar só por causa de ter
que um dia ir embora... Você pode ficar tranquila, pois estaremos cientes
disso.
É claro que eu achava a ideia ótima de ter um lugar
na Rock Urbano, mas estava com medo de acabar me prendendo a essa vida, eu não
posso nem pensar em me prender, preciso estar com o caminho livre, vai que uma
dia eu precise sair correndo.
– Gosta de salsinha? – Perguntou ele.
Disse sim com a cabeça e Lucas sorriu pra mim.
Fiquei pensando... Eu poderia aceitar o convite dele, sei que sou forte para
deixar a banda se algo sair do controle... Acho que não tenho nada a perder...
– Podemos tentar – Eu disse sem olhar para o rosto
dele, mas senti que ele sorria de novo.
Voltei a ficar quieta e caminhei até o armário de
mantimentos, encontrei uma garrafa de azeite e imaginei seu sabor misturado à
maionese; não pensei duas vezes...
– Coloque um pouco disso, vai ficar gostoso.
– Boa ideia.
O jantar já estava pronto quando Sandra chegou.
Lembrei que precisava falar com ela, mas não sabia como começar.
– Fiquei pensando em você o dia todo Rebeca – Disse
ela enquanto servia seu prato com a deliciosa maionese.
– Espero que sejam coisas boas – Sorri
discretamente no final da frase.
– Eu acho que é uma ideia... Bacana – Ela estimulou
minha curiosidade – Eu estava pensando na possibilidade de você vir trabalhar
comigo... Sei lá... Senti falta de uma assistente, fico pra cima e pra baixo
pela cidade e acabo me perdendo no cronograma... Em fim. Preciso de alguém
esperta, ágil e determinada – Sandra pausa a conversa com uma gargalhada
debochada.
– Obrigada pelos elogios.
– Não por isso! O que você acha? Eu pago bem. Assim
você não vai precisar mexer na sua poupança e vai poder sair e comprar o que
quiser sem culpa.
Não tinha pensado na herança, mas a ideia da minha
tia era ótima, pelo menos era uma forma justa de ter meu dinheiro, sem eu me
sentir receosa mais tarde.
– Isso é uma noticia ótima! Eu aceito sim. Se
soubesse o peso que tirou das minhas costas.
– Serio?
– Sim! – Ela ficou pensativa, mas não deixei com
que o assunto se desviasse – E quando começamos.
– Tem RG, CPF e carteira de trabalho? – Perguntou
Sandra.
– Tenho sim!
– Ótimo você começa amanhã.
– Está aí, Talvez eu precise fazer algo diferente
mesmo, mas quero ver como vou conciliar a banda e a escola que logo vai
começar...
Quer saber? Que se dane... O negocio está no papo.
Novembro
nem acabou e a cidade já está enfeitada para o natal. Da janela do Voyage vejo
famílias já no clima festivo – O natal para mim é uma data muito especial, mas
esse ano será esquisito, porque minha mãe não vai estar comigo para decorar
nossa árvore.
Não
posso deixar que a saudade afete meu humor, não quando ao meu lado tem um
garoto hilariante que não parou de contar piadas desde a hora que saímos de
casa.
–
Adivinha essa! “O que fazer para um passarinho extravasar em risos?” –
Perguntou Lucas, já rindo antes do desfecho da piada.
– Essa
é fácil! Chamamos você pra contar piadas de aves! – Ironizei.
– Pode
ser, mas a resposta não é essa – Ele olhava a rua esperando a resposta.
– Sei
lá! Conta aí!
– Ok!
Para um passarinho extravasar em risos você só precisar jogar ele na parede...
O bichinho vai “rachar o bico” – O garoto com certeza estava forçando a
gargalhada... A piada nem era tão boa assim – Entendeu? “Rachar o bico”.
Enquanto
ele ficava tagarelando sobre as origens de suas piadas eu fitava a brilhante
noite dos pisca-piscas. Lembrei-me do natal do meu decimo quinto aniversario que
ele passou comigo e minha mãe – Não sei o que Lucas gostava tanto em Peruíbe
que fazia com que ele fosse pelo menos uma vez por mês nos visitar... Só sei
que era muito reconfortante tê-lo conosco, nós duas nunca nos sentíamos
sozinhas.
Lucas
mesmo com seu jeito brincalhão nunca deixou a maturidade. Assim que terminou o
colégio entrou na faculdade de Direito e sem que Ricardo soubesse, o filho conseguiu
um estagio como assistente júnior na empresa onde pai é presidente. O garoto não queria ser beneficiado, fez
todas as etapas como qualquer jovem faria para tentar entrar, assim ele não
seria jugando por ter conseguido a vaga por causa da influência do pai. Lucas não parece fazer as coisas pensando em
agradar a todos, mas seu carisma e serenidade são tão notórios que é difícil
não sorrir quando ele está perto.
–
Beck! Vamos? Chegamos! – Diz Lucas, interrompendo meus devaneios.
Ele me
fitava com aqueles olhos convidativos de sempre e sorria pra mim com toda
meiguice que tens – Me Tremi inteira.
O
manobrista levou o carro para o estacionamento, Lucas segurou minha mão e me
levou para a entrada do estabelecimento, notei que ele puxava uma case e carregava
no ombro um estojo de guitarra, certamente ele pegou esses objetos enquanto em
enrolava para sair do Voyage.
– Hoje
é um grande dia pra mim... Por isso eu trouxe você comigo, espero que goste –
Ele fitava o gigantesco luminoso que estava escrito, O Bar Vikings, ele estava hipnotizado.
O bar
estava localizado no centro de São Paulo, na esquina de uma avenida muito
movimentada, a Vikings pegava quase um quarteirão inteiro... Com certeza não
precisa ser adivinho para julgar que O Bar Vikings é para clientes acostumados
a pagar 100 ou 150 reais numa dose de uísque... Ou até mais.
Um
grupo de rapazes acena para Lucas, ele reconhece os rostos e vai de encontro.
Minha
cabeça está um turbilhão... Juntemos os fatos. Lucas me leva para um bar no
centro da cidade com uma case e um instrumento, depois encontra mais três
garotos com mais equipamentos, com certeza o encontro deles foi premeditado.
Qual parte de sairmos juntos eu ainda não entendi?
–
Beck! Vem aqui! – Veja só! Eu ainda não estava invisível.
Aproximei-me
do Lucas, mas não tão perto, eu estava evitando especulações sobre existir um
vinculo entre nós dois, um vinculo intimo demais.
– Quero
que você conheça a banda... Rock Urbano!
Ele
começou pelo gordinho.
– Esse
é nosso baterista, Guto, o magricela e o Ramon, vulgo Tripa Seca nosso
baixista... “E o quatro olhos” é o Barata...
– Por
que Barata? – Perguntei para sujeito de cabelos enferrujados, mas foi Lucas quem
respondeu.
– É
porque ele tem certo desafeto com esses insetos tão... Incompreendidos, Não é
mesmo Batata meu filho? – Lucas apertava a bochecha do menino tímido.
– E o
que você faz na banda, Barata? – Mas uma vez Lucas foi intrometido.
– Ele
fica na percussão.
–
Obrigado Lucas, mas se continuar respondendo pelo Barata vou pensar que o
garoto e mudo – Fingi estar seria, mas não consegui conter o riso quando notei
a careta de Lucas que logo sorriu para mim com uma intensidade mais desconcertante.
Os garotos estavam rindo juntos e nesse
contratempo Guto deixou escapar:
–
Tenta ficar frio Lucas... Porque você está queimado.
Lucas
deu uma chave de braço no gordinho e beijou sua bochecha redonda.
–
Gordinho gostoso! – Lucas brincava com Guto que correu para o lado dos outros
companheiros.
Eu não
percebi que estava rindo de novo, Lucas realmente tinha o dom de fazer as
pessoas ao seu redor ficarem felizes... E era olhar nos olhos das pessoas para
ver o carinho que todas tinham por ele. Lucas é muito querido.
– E
você, Princesa? Qual é o seu nome? – Quem perguntava era Ramon, o baixista da
“Rock Urbano” que se deslocou do grupo para falar comigo.
–
Vamos combinar uma coisa? Vamos deixar a “Princesa” no castelo dela... Então
deixo você me chamar de Rebeca. Tudo bem? – Particularmente eu não gosto que me
titulem de “Princesa”, “Mina” ou “Garota”, mesmo que a pessoa não tenha a
intenção... Para mim esses substantivos soam arrogantes.
–
Gostei! Isso mostra que você tem atitude... Admiro “pacas”.
Estou
aliviada por Ramon ter entendido, pois não tenho a intenção de jogar um balde
de água fria nesse clima tão legal. Para provar isso eu arrastei ele para mais
perto do grupo, mas os garotos já estavam com o clima alterado.
– Ele
não atende – Disse Lucas preocupado.
–
Tenta de novo! – Insiste Guto.
– Eu
já tentei, mas cai na caixa postal.
– O
que houve? – Ramon tira as palavras da minha.
–
Flavio não atende o celular, não avisa se vai atrasar e a única coisa que eu
sei é que temos somente vinte minutos para começar.
– Já
tentou ligar na casa dele – Pergunta Ramon.
–
Estou tentando, mas também não atende – É Guto quem responde.
Os garotos estavam tensos, Lucas andava de um lado para o
outro com o celular na orelha – Impulsivamente seguro o braço dele e em
resposta ele me fita desajeitado.
– O
que está acontecendo? – Eu já tinha ideia do que estava rolando, mas eu
precisava desacelerar Lucas.
–
Desculpe. Tudo isso era para ser uma surpresa... Este bar é de um cliente muito
importante do meu pai, quando eu percebi que havia shows ao vivo aqui pedi a
ele que desse uma oportunidade para a nossa banda se apresentar. Disse a ele que
não precisava pagar, pois a intenção era mostrar nosso trabalho... Como amigo da família ele não pensou duas
vezes ao aceitar...
Lucas
deu uma pausa para recuperar o fôlego.
– Acontece
que o Flávio, o nosso vocalista, ainda não chegou e não podemos nos apresentar
sem um vocal... Às vezes o Barata faz a segunda voz, mas nada que se compare...
É
claro que Lucas esperava uma alternativa, mas a única coisa que eu consegui
pensar foi em tranquiliza-lo, mesmo que fosse temporariamente.
–
Flávio com certeza deve estar preso no trânsito, isso e tão comum acontecer,
não é mesmo? – Lucas deu de ombros – Por que você não entra com meninos e vão
montando tudo? Assim que Flávio chegar... Já vai estar tudo pronto.
Dito e
feito, os garotos estavam mais confiantes na ideia que eu plantei – Espero
estar certa.
Confesso
que esperava um passeio mais tradicional, como ir ao cinema, fazer um tour pela
cidade ou até mesmo tomar um cafezinho na padaria, mas ajudar ele a preparar os
instrumentos no palco era o lugar onde eu deveria estar.
Os
minutos estavam passando e Lucas não conseguia disfarçar o nervosismo, foi
quando Guto apareceu e disse sem nenhum suspense.
–
Tenho más noticias, Flávio pegou uma virose e não virá, ainda está no hospital
tomando medicação... O que faremos agora?
Lucas
deixou o que estava fazendo e levou as mãos para a cabeça soltando um logo
suspiro.
– Não
podemos fazer o show sem Flávio... Imprevistos acontecem, a gente tem que
aprender lidar com isso.
Quem
Lucas queria enganar? O grupo estava decepcionado, até pude ouvir alguém dizer
algo sobre “desistir dessa palhaçada”, mas como podem pensar assim? Desistir só
porque não tem um vocal? Eu mesma poderia substituir Flávio...
É
claro! Eu podia fazer isso, até fiz isso uma vez no colégio... É claro que hoje
o publico é outro, mas não deve ser tão diferente, não é mesmo?
A
minha ideia pode ser uma maluquice, mas é a única que eu tenho para tentar
salvar o show.
Eu
estava tão presa ao meu pensamento que não percebi que Lucas estava pronto para
anunciar o cancelamento da apresentação, mas foi o choque de adrenalina que me
impulsionou para falar.
– Eu
posso cantar – Minha voz saiu tão baixa que ninguém me ouviu – Eu posso cantar
gente – Será que ninguém está me ouvindo – CALEM A BOCA DROGA! – Agora eles
estavam me ouvindo.
Ele
veio a mim e acariciou meu rosto, Lucas estava sereno de novo.
–
Beck, não chore – Que Droga! O que esta lagrima está fazendo aqui.
– Me
solta! – Livrei-me bruscamente das mãos de Lucas e descarreguei minhas palavras
– Escutem, não cancelei o show... Eu posso cantar...
–
Mas... – Começou Ramon.
– Mas nada! Confiem em mim, vocês não tem alternativa.
A verdade é que eles tinham uma segunda
alternativa... Poderiam cancelar a apresentação, mas Lucas queria tanto que
esse show acontecesse, olhos dos meninos brilhavam tanto que... Eu não tive
alternativa. Eles não precisavam acreditar em mim, pois eu mesma não estava tão
confiante, mas acreditaram e agora eu tenho que valer minha promessa. Que
comesse o show.
Lucas me mostrou a lista do repertório, tive a
sorte de conhecer cada faixa e os garotos me deixaram a vontade para organizar
as canções, então eu escolhi começar com uma que poucos conhecem... Mas que
para mim é um hino, hino que cantei frente ao espelho no dia que resolvi mudar.
“Playing God” (Brincando de Deus) do Paramore.
Ramon começou a tocar as primeiras notas e eu
já estava de olhos fechados, mentalizando a canção da minha redenção, me
preenchendo de fé, me completando. Abri os olhos e comecei a cantar.
Eu sabia que uma multidão estava me fitando,
mas e daí, eu estava cantando com uma banda de verdade... Com garotos legais
pra caramba... Com o Lucas, que conseguiu me proporcionar a melhor noite de
todas.
Terminei a canção. Não estava sonhando, o
alvoroço era para nós, estavam nos aplaudindo...
– Você conseguiu! Você Conseguiu! – Lucas me
apertava em seus braços, à eletricidade de seu corpo me arrepiou.
– Nós conseguimos... Todos nós – Eu o
lembrava.
Lucas estava emocionado, ele libertou as mãos
de minha cintura, pegou o microfone e falou.
– Olá pessoal, hoje está sendo a melhor noite
da minha vida, pois consegui reunir meus melhores amigos, meus melhores
parceiros para concretizar um sonho que estava preso dentro de uma garagem...
Estamos felizes, estamos realizados, sim, estamos, mas a banda a de convir
comigo que isso não teria acontecido se essa mocinha aqui... – Lucas pegou na
minha mão e me levou para o meio do holofote –... Não tivesse, com sua coragem,
nos arrastado para esse palco e mostrado, não só para vocês como também para
nós, o talento grandioso que tens. Por isso é com orgulho que eu apresento a
todos vocês... A nova integrante da Rock Urbano a minha... Prima, Rebeca!
O susto foi inevitável, mas logo Lucas vai
caí na real. É melhor eu esquecer o que ele disse e terminar logo esse show,
pois a única coisa que eu quero agora e botar minha cabeça no travesseiro e
dormir.
São
cinco e meia da manhã, Sandra me avisou que acordaríamos cedo, só não sabia que
seria tão cedo, até o sol está dormindo, mas tudo bem; vamos lá, vamos
levantar. Hoje será um grande dia, disse minha tia, irei trabalhar com ela no
Buffet, rodaremos a cidade para visitar algumas clientes importantes e
voltaremos somente ao entardecer. Ainda bem que o dia será de sol, assim afirma
a simpática apresentadora do telejornal.
A um
grande tumulto nos corredores de casa, é Lucas gritando para Carlinhos sair
logo do banheiro, Ricardo perguntando a Sandra onde ele deixou a gravata, Sandra
vestindo sua camisa enquanto faz o café da manhã, depois gritando para
Carlinhos não enrolar no banho e mostrando que a gravata de Ricardo está no
pescoço dele. Agora eu entendo o porquê de acordar tão cedo.
Peguei a espátula da mão de minha tia e
terminei de fritar os ovos, de passar o café e de espremer o suco de laranja do
Carlinhos, com isso Sandra pode terminar de se vestir. Estava terminando de
arrumar a mesa quando Lucas apareceu e me beijou na bochecha.
– Beck! Você pode me ajudar? – Ele estendeu
os dois braços para que eu abotoasse os botões da manga.
– Vai a algum culto vestido assim?
– Quase isso! Apresentação do TCC! – Ele
levou a brincadeira na esportiva.
– Vai se formar em quê?
– Direito – Ele não parecia empolgado.
– Pensei que queria ser músico? – Lembro que
ele me falou sobre isso numa noite, depois do jantar em uma das muitas vezes
que ele nos visitou em Peruíbe.
– Eu não desisti da música, Direito é só
um... Adicional.
Enxuguei as mãos em um pano de prato e
comecei a abotoar a primeira manga. Dei uma olhadela para ele e, lá estava seu
sorriso discreto e seus lindos olhos me fitando – Lucas é tão alto que minha
cabeça não passa de seu peito que por sinal... Está perto demais.
– Pronto! – Disse me afastando de seu
delicioso perfume.
– Falta a outra! – Lembrou-me com aquele
sorrisinho de novo.
Puxei seu braço pela manga da camisa com
certa rudeza e abotoei, arquejando e fitando seu rosto debochado.
– Não falta mais.
Virei às costas para Lucas e fiquei trocando
os objetos na mesa só para parecer que eu estava ocupada de mais para dar
atenção, mas ele continuou parado, até que começou.
– Não acredito! Morangos! Eu adoro morangos!
Ele pegou dois morangos e abocanhou metade de
um.
– Está uma delicia, coma um! – Ele empurrava
o outro morango que pegou para minha boca.
– Agora não, vou esperar os outros.
– Qual é o problema Beck? Tem uma caixa
cheia, ninguém vai se importar se você comer um antes.
– Está legal! Só um e você me deixa em paz!
Ok?
Lucas era um idiota, fez aviãozinho com a
fruta e depois puxou de volta.
– Espera! Vou colocar um pouco de mel, isto
vai ficar uma delicia – O garoto ria como um perfeito idiota mesmo – Mmmm!
Agora sim! Abre o bocão.
– Acaba logo com isso!
– Quietinha! – Eu não acredito que ele estava
fazendo isso, sério...
A idiotice do aviãozinho de novo e o obvio
aconteceu, o babaca não me deu o morango e engoliu a fruta de uma só vez.
– Eu tinha razão, estava uma delícia – Lucas
dava gargalhadas.
– Há, há, há. Que engraçado juro que vou rir
até amanhã.
– Pode ser, mas eu tenho uma ideia melhor –
Agora ele coloca as mãos na minha silhueta. Meu corpo tremeu.
– Esteja bem bonita hoje à noite, vamos sair.
– Não acho que seja uma boa ideia! – O que
será que ele está aprontando? Não confio nele, só penso no dia em que ele contribui
com a piada de mau gosto daqueles moleques patéticos.
– Quem
disse que é um pedido? – Ele não me deu a chance de resposta, simplesmente
virou as costas e saiu.
Eu não demorei em me arrumar, coloquei meu
All Star preto de cano longo, uma saia colegial de listras vermelhas e pretas e
uma camiseta, também preta sem estampa. Deixei meus cabelos soltos e úmidos e
fiz minha maquiagem de costume.
Lucas pegou carona com o pai – Vendo um ao
lado do outro eu não sabia dizer qual dos dois era o mais bonito, pois mesmo
Ricardo tendo seus quarenta e poucos anos, ninguém diria que ele é o pai de
Lucas, no máximo diriam que é um irmão mais velho – Eles entraram no carro, mas
antes de partir Lucas disse “Não esqueça o que eu te disse”.
Realmente
não consegui esquecer o atrevimento de Lucas, toda vez que me lembro do convite
começo a rir para eu mesma como uma boba alegre... Como uma garotinha apaixo...
Não quero nem pensar nessa palavra, nem vou pensar nessa palavra. Tenho sorte
que a Sandra tem muita coisa pra fazer e consequentemente eu também.
Deixamos
Carlinhos no colégio, depois fomos direto para o Buffet – Sandra já tinha seis
filiais espalhadas pela capital, mas fomos para a matriz aqui mesmo no
Alphaville – Ela me disse que acertou em
cheio quando escolheu trabalhar com eventos, ela não quis dizer quanto lucra,
mas ouvi uma recepcionista no telefone dizer para um cliente que só tem
agendamento disponível para daqui um trimestre, o mais incrível é que o cliente
aceitou e fechou uma festa infantil por 20 mil reais. Em menos de uma hora a
recepcionista fez no mínimo cinco agendamentos o ultimo foi um casamento que
custou no mínimo 100 mil reais.
Difícil
de acreditar, mas as pessoas aqui gastam muito dinheiro só pra alimentar as
lombrigas dos playboyzinhos. É hipocrisia eu falar já que agora eu faço parte
do mundo deles. Só espero não me tornar uma alienada como muitos... Terei sempre
que me lembrar de quem eu sou e o que realmente importa pra mim.
Prosseguimos
com nossas tarefas, encontramos quem tínhamos que encontrar, conversamos, quer
dizer, Sandra conversou, porque como sempre minhas roupas causaram repulsa nos
olhos dessa socialite metida a besta, mas eu não estou nem aí com essa gente,
só quero ser uma ótima companhia para minha tia e ponto final.
O dia
realmente foi cansativo, mas eu não podia nem pensar que ele acabou já que a
noite ainda iria começar. Poderia dizer a Lucas que estou muito exausta e então
cancelar o compromisso, “só que não”,
preciso dessa noite, não que Lucas tem haver com alguma coisa porque ele não
tem. Sou uma pessoa movida à música, a uma multidão de pessoas completamente
desconhecidas que não querem nem saber como o resto do mundo está ou como vai
ser quando o novo dia começar. Que o mar pegue fogo para eu comer baleia
assada, hoje todos meus martírios vão ficar em casa.
– Você
está linda Beck! – Disse Lucas.
Nisso
eu tinha que concordar, eu estava linda, não porque eu estava me sentindo ótima
no meu jeans básico, na minha Baby Look branca como uma estampa multicolorida,
e aquele All Star branco que rabisquei qualquer coisa que não faz sentido pra
ninguém, mas pelo fato de que pela primeira vez depois que minha mãe se foi, eu
estou me sentindo livre de verdade, aceitando o que aconteceu esses últimos
meses. Sempre vou sentir saudades da minha mãe, mas só vou lembrar as coisas
boas que a gente viveu, pois sinto que estando em paz, mesmo com a ausência
dela é como se eu tivesse libertando ela pra ficar em paz nos céus.
Eu te amo mãe... E sei que nunca ficarei
sozinha.
Lucas
não diz mais nada só me estende a mão, que diz muita coisa.
“Vem
que eu te protejo”
Eu agarro
a mão dele com toda firmeza e deixo que me leve.
Está um dilúvio lá fora.
Passei a manhã colocando as coisas no lugar, o quarto de hospedes ficou pronto
graças ao Lucas que fizera isto enquanto eu visitava Peruíbe. Sandra não pediu
isso a ele, pois ela comentou algo sobre nós duas trabalharmos nisso - Será que
o menino está tentado me impressionar? – Não tive tempo de vê-lo ainda... É até
estranho falar isso já que somente um andar divide a gente, mas Lucas não é do
tipo que para em casa, contudo não o vi sair do quarto hoje, nem pra tomar café.
Talvez eu faça uma visita, assim eu retribua o favor.
Tomei a liberdade de passar um
café, pensei, já que vou ficar de molho em casa que seja com uma caneca bem
cheia e um ótimo som do meu violão. Apesar do tempo eu ainda não esqueci como
se toca.
Havia uma canção que minha mãe
sempre me pedia para tocar, True colors, Cyndi Lauper, modéstia parte eu decorei
a musica em dois dias porque além da minha mãe , eu também adorava! Ela sempre
chorava quando eu cantava o refrão... Planejei cantar uma última vez no enterro
dela, mas eu tinha perdido a voz naqueles dias de tanto que gritei por ela em seu leito quando ela me
deixou.
Droga! Tocar era para ser uma
coisa boa em um dia cinza como o de hoje, desanimei.
Ricardo está esparramado no
sofá dando risadas de uma serie na TV, completamente distraído com o conteúdo
do programa e as piadas do apresentador, talvez não seja uma boa ideia eu
interrompe-lo com um diálogo mesmo a gente não ter tido nenhum desde o dia que
cheguei.
Sandra tirou o dia para ficar
com Carlinhos, o garoto tem passado a semana em uma carência peculiar da idade
dele, saíram ainda quando era alvorada. Achei justo ela não ter me convidado,
eu mesmo no lugar dele não ficaria a vontade, mas confesso que Sandra se tornou
pra mim uma companhia agradável, hoje nossas conversas seria um ótimo isolante
para minha solidão. Vou ter que improvisar.
Passei despercebida por
Ricardo e fui para cozinha, joguei uns biscoitos de chocolate dentro de uma
pequena travessa e corri para o primeiro andar, ainda despercebida.
O quarto não estava silencioso
como eu imaginava... Estilhaços de vidros, sirenes de viatura e gritos de
pessoas eram os sons anasalados que saiam do quarto – Chamei
juro que chamei, mas ele não atendeu – Meu
pulso já estava sentindo o peso da travessa, a porta estava destrancada então
entrei.
– Oi? – Eu poderia ter sido melhor.
Lucas deu uma olhadela para mim e rapidamente
pausou o jogo na sua TV de 50 polegadas.
– Oi! Está tudo bem? – Lucas me fitava com
seus olhos cinzentos sem desviar o olhar, estava completamente a vontade com
sua bermuda preta, sua camiseta regata, seus pés descalços no carpete e seus
cabelos castanhos arrepiados.
– Pode me ajudar? – Eu me referia à travessa
que escorregava da minha mão.
O garoto pegou o objeto como se fosse uma
pena e colocou em cima da sua cama.
Estou vermelha... E quando eu fico assim
começo a tagarelar.
– Está explicado o barulho de estilhaços,
sirene...
– O quê? – Lucas estava boiando.
– O jogo... É muito bom – Ele nem estava mais
olhando para a TV.
– Você conhece o jogo? – Pergunta ele.
– O quê? Resident Evil? Você está brincando,
esse eu zerei em 5 horas – Está aí, algo que eu faço tão bem quanto tocar
violão.
– É impressionante, não conhecia esse seu
lado... Como é mesmo? Rebeca! – Lucas deixou escapar um singelo sorriso como se
tivesse uma piada muito boa em seu pensamento.
Não respondi, fitei a TV e fiz o personagem
do jogo decepar a cabeça do zumbi com um tiro fatal.
– Eu estava errado naquela noite na
varanda... Não importa o nome que você adotou ou as vestes que você escolheu
usar, eu olho pra você e ainda vejo a mesma garota, nada mudou é só a antiga
Ana procurando uma forma de se alto imunizar do que virá em diante. A pergunta
é “Pensar em mudar os velhos hábitos vai ajudar?”.
O zumbi pegou e estraçalhou o herói, isso não
teria acontecido se as palavras de Lucas não tivessem me perturbado.
– Você morreu!
Que merda ele está falando? Será que é tão
difícil de entender que eu escolhi ser chamada de Rebeca pelo fato de que como
Ana eu me sentia medíocre? Se para as pessoas minha escolha reflete como uma
fragilidade psicológica então eu só tenho uma coisa pra dizer... Dane-se!!!
Realmente... Não quero me imunizar de nada,
pois não acho que eu venha aprender algo estando imune a elas, mas eu não
preciso dizer isso a Lucas.
– Foi uma distração, mas não vai acontecer de
novo, garanto – Roubei um biscoito na travessa e reiniciei o jogo.
– Hey! Pensei que os biscoitos fossem pra
mim.
– Eu também! – Estávamos rindo juntos.
Hoje não é um dia para mexer no passado,
quero que o garoto ao meu lado seja apenas o Lucas de cabelos arrepiados que
sorri com minhas caretas enquanto jogo.
– Está aprendendo seu “Nub”?
– Nub? – Juro que ele não sabia.
– É como eu chamo os principiantes.
Estávamos nos conhecendo de novo e
redescobrindo nossas qualidades, mostrei a ele como joga e ele retribui me
mostrando como acertar o tempero do molho da lasanha que ele fez para o almoço.
Dividimos o sofá com Ricardo e passamos o
resto da tarde assistindo TV e rindo das piadas sem graça dele.
Já era crepúsculo quando Sandra chegou, o
sorriso de Carlinhos ia de uma bochecha a outra, ele sentou entre Lucas e eu
tagarelando as novidades que encontrou no passeio e minha tia cedeu ao beijo de
Ricardo como uma trégua.
– O que temos para jantar? – Pergunta Sandra.
Aqueles mesmos olhos cinzentos de hoje cedo
olhava novamente para mim com toda intensidade. Eu tremi.
– Beck! – Havia um sorriso cínico em Lucas –
Topa aprender fazer pizza?
– Agora eu sou Beck? – Lucas deu de ombros –
Bora!